sábado, 1 de novembro de 2008

Pra não dizerem que eu só falo de flores...

Acho que quem resolve trabalhar com os pobres, com os mais pobres ainda que a gente, passa muito tempo brincando de "jogo do contente". É normal, é justo, provavelmente é a única forma possível de sobrevivência digna. Mas tem limite. E acho que o limite é esse mesmo, a dignidade. Não só a nossa, não só a do outro. A dignidade de saber que não se está enganando a ninguém. Que não se está enganando a si mesmo.


Parafraseando meu tio Evaldo, que por sua vez diz isso parafraseando um filme cujo nome ele não recorda, a minha história é longa, e muito desinteressante. Vou tentar, portanto, resumir muito: trabalho na educação municipal há três anos e meio, passei pelos mais variados perfis de escola. Cheguei a elaborar uma pequena tipologia:



1. "Escola-várzea-terra-de-ninguém": Não tem direção, absolutamente ninguém se responsabiliza pelo que ocorre lá dentro. Pode ser no centro expandido ou na periferia. A minha ficava bem no meio de uma favela no Heliópolis - o que parecia tornar as coisas um pouco mais complicadas. O nome desta escola, em particular, é EMEF Gonzaguinha. As instalações remetiam a um presídio comandado pelo PCC. Quem dera fosse a única nesta categoria. Tendo a crer que não seja nem mesmo minoria, quem dirá que é exceção....



2. "Escola-bonita-a-fim-de-dar-certo": Era, na época, o CEU Meninos. A estrutura física maravilhosa que nossa querida prefeita deixou, público de periferia, equipe afinada. O ambiente levantava o astral dos alunos, dos habitantes do bairro - já que, mais do que uma escola, o CEU era concebido como espaço público, e, principalmente, o nosso, pois tantos de nós estávamos já quase conformados com a condição de quase carcereiros, conseqüência das costumeiras instalações em forma de presídio. Nesta época, mais que tudo, tive a sorte de trabalhar junto com a maravilhosa professora Branca, deste coletivo. Viajando para lá de busão, nos longos trajetos de ida e volta, foi que nos afinamos tanto em termos de visão e posicionamento prático, teórico, político, filosófico e pedagógico, além das trocas geográficas necessárias. A professora Branca tem sua hipótese sobre a equipe tranqüila e afinada do CEU Meninos: a escola era nova, não havia formado "panelas" de convívio, não havia viciado as estruturas de poder. Não havia ali tantas mágoas acumuladas nas eternas confusões entre vida pública e vida privada do funcionalismo de uma repartição. Eu acho que faz muito sentido. A orientação do trabalho, em uma equipe afinada, é influenciada por todas as diretrizes presentes na ideologia, mas o que acaba sendo mais forte é a prática, a resolução dos problemas que se apresentam numa realidade específica, e isso é bem rico.



3. "Escola-na-crista-da-onda-do-discurso-pedagógico": Era a EMEF Olavo Pezzotti, na Vila Madalena. Sinto que preciso resumir mais. Esta escola tinha o quadro profissional fortemente influenciado pelo pensamento pedagógico, particularmente as tradições católicas dos anos oitenta. Então, o pessoal se esforçava para entender as novas orientações da ciência pedagógica, que resolveriam seus problemas, a diretora, inteligentíssima, procurava estar sempre muito atualizada neste quesito - e o fazia magistralmente. No entanto, esta escola sofria de um mal que eu atribuo justamente à adesão às teorias da ciência educativa: a total falta de limites OBJETIVOS para o comportamento do educando. Como criança não é burra e jovem é outro papo, não demorava muito para os alunos perceberem que ali mandava quem podia (os grandes), obedecia quem tinha juízo (os pequenos), e que os adultos podiam ser visto como uns empecilhos meio chatos, uns maiores, outros menores, alguns como amiguinhos, outros como pinos de boliche, outros ainda como uns cachorros que ficavam latindo no caminho e às vezes mordiam.

Então, na prática, a tal escola-moderna-dos-pobres era muito parecida com aquela, a categoria 1, a terra-de-ninguém. Com a distinção de que aqui os adultos não desertavam, apenas fracassavam de maneira retumbante. Faço também a ressalva de que a realidade com que tive contato foi o curso de quinta a oitava séries, havia umas histórias de que com os pequenos, de tarde, era diferente. Pode ser mesmo verdade, já que, bem ou mal, os pequenos são pequenos, todos menores que os adultos, há objetividade nisto. Além disso, parece que os esforços da direção estavam mais canalizados para as professoras de primeira a quarta.



4. Escola-tradicional-disciplinadora: É nesta que eu trabalho atualmente, pela convicção, formada na prática, de que os limites para o aluno têm que ser objetivos. Esta é a condição mínima para o trabalho, ponto de partida para qualquer ação educacional. Já mencionei esta convicção em outro texto, quando falei sobre assumir a falibilidade - nenhum trabalho pode ser encarado como infalível, ainda mais em se tratando de ser humano. Falar que não pode dar errado, que nenhum aluno pode ser excluído, é um sofisma. Só tem coragem de dizer que não falha quem mente de maneira deslavada.

Bom, isso é um ponto. Baseada nele, fui para lá. Ali, é relativamente fácil construir uma relação tranqüila com os educandos, ocupar o lugar da autoridade, como se diz. Fácil, porque há o indispensável respaldo institucional. Baseada neste mesmo ponto, tenho gastado tempo e energia para unir meus esforços aos de outras pessoas que gostam de ensinar e, pela mesma razão, resolveram estar ali.
Outro ponto é o que acontece, na prática, quando uma escola conservadora assume sua vocação para reformatório...


Terminada a breve (espero ter sido breve) exposição da minha fantástica tipologia, voltemos ao jogo do contente. É o que eu tenho feito todos os dias, para ter êxito em aproveitar o que esta instituição oferece (além do "respaldo disciplinar", que dá chance de tentar de muitos jeitos vencer as dificuldades criadas nos alunos - muitas vezes, criadas pelo próprio "respaldo disciplinar", as ótimas intalações e equipamentos).

Mas agora estou profundamente cansada.

A disciplina vazia de sentido é muito malvada, muito violenta, e eu simplesmente não agüento mais conviver com adultos que trabalham com criança sem gostar de criança, com pobre sem gostar de pobre. Pra tentar resumir a merda que tem sido esse ambiente, só vou contar que esta semana tive que ficar em sala com uma aluna de doze anos que chorava copiosamente por que apanhou da mãe (havia mentido, e roubado cinco reais, me contou no banheiro, pediu pelo amor de deus pra ser ouvida). Ninguém na turma era solidário, ela é muito mal-quista (é discriminada, sobretudo, por sua conduta sexual). O roubo, deduzi, foi para comprar a caixa de chicletes que ela andou distribuindo dois dias antes, para ver se arrumava algum amigo (os outros, que não gostam dela, me contaram isso porque sabem que eu não permito os chicletes). Precisava ela sair dali, então, tentem imaginar a cena: a figura que é motivo de chacota de todo o mundo, chorando sem parar em público, com expressão de dor profunda, e um certo silêncio sorridente da parte de várias pessoinhas (que, com doze anos, já se pode ser bem filho da puta). Meu Deus! Daí, fui tentar providenciar que ela ficasse lendo gibi, sossegada, sozinha, até se acalmar ao menos, ou até que eu pudesse dar mais atenção (eu já havia passado uns dez minutos antes da aula começar junto com ela). A adulta-minha-superiora disse que, no máximo, poderia chamar a mãe. Expliquei para minha superiora que a origem da crise era a relação com a mãe, e que era preferível deixar ao menos aquele desespero passar. Escutei quase uma bronca: "E por acaso você sabe o que ela fez? Sabe POR QUE a mãe bateu nela? ? " Respirei, para ficar mais calma. "Não sei se isso importa agora, e sinceramente gostaria que, enquanto ela não se acalmar, ninguém tentasse falar com ela" Pra terminar o assunto, lembrei da história da Shéslida, dizendo que estou muito traumatizada desde que a menina da oitava série teve um surto ali mesmo, sendo inquerida sobre, não por acaso, um roubo (atentado mais grave que um pobre pode cometer, contra a legítima e sacrossanta propriedade), por esta mesma superiora. A moça tentou se matar, ficou completamente fora de controle, bateu em três adultos grandes ao mesmo tempo, teve que ir sedada para a clínica psiquiátrica. Não apareceu mais na escola. E vejam como os incríveis adultos enfrentaram a questão: a moça é puta, trepa. E agora, ainda rouba. Que fazer?

Que fazer com esses educadores, pergunto eu? O jogo do contente, parece, ultrapassou o limite da indignidade.

5 comentários:

  1. Vou falar um monte de coisas soltas, por pura incapacidade de formular um pensamento objetivo.
    O que tenho reparado é que as pessoas, aliás, os funcionários, todos, em especial dentro de uma escola, vêem-se obrigados, diariamente, a cometer "ações pedagógicas", ou seja, a impedir condutas entendidas como "erradas", e tentar transformá-las em "corretas". O problema é que ninguém sabe fazer isso. Ninguém foi preparado, e, aliás, acho que esse "preparo" nem existe. Ao menos não assim, "formalmente"... Nem os faxineiros, nem os inspetores, nem os professores, nem os diretores... Todos ficam expostos diariamente a cinucas de bico, a ter que solucionar NA HORA, problemas de raizes profundamente existenciais, psicologicas, filosoficas, antropologicas, pedagógicas, ogicas, ogicas, ogicas. Problemas os quais, nem no conexto da própria vida, a maioria parou pra pensar ainda, e, então, ali na hora, tem que se virar pra conseguir dar "a voz da verdade", a "solução", em menos de cinco minutos. No nosso caso, aqui no Brasil, agora, nessa época, ou sei lá quais são os motivos mais profundos disso, temos uns tabús e sentimentos mal resolvidos com questões que envolvem sexo, roubo, e condutas libertárias. Isso, desde o faxineiro ao diretor. E o que acontece, é que quando as pessoas caem ali na hora, direto numa situação que tem que resolver rápido, o cérebro entra numa dinâmica de encurtamento da capacidade fisiológica filosófica e resume tudo: "ela dá", "ele rouba", "é puta desde criança", "esse ai não tem mais jeito, saiu daqui vai pra FEBEM", e por aí vai... Eu não sei o que fazer. O ideal, pra mim, seria fazer uma magia: Parar o mundo, o tempo e tudo. Pausar tudo. Então retirar um por um da situação em si, e ir mostrando cena por cena do dia a dia, e conversar, refletir, e tudo mais... Até os professores de matemática, rs. Depois todos voltarem ao trabalho, devidamente descançados e elucidados, de uma forma mais abrangente quanto à complexidade e delicadeza da situação. Mas acho que não vai acontecer isso.
    É mais ou menos isso o que tenho visto, com alguma coisa mais e alguma coisa a menos...

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  2. Aliás, acho que a síntese do que ando pensando sobre esse assunto, é que os adultos precisam de professores para ensiná-los. Por exemplo essa diretora aí que justificou a situação "mais ela roubou!". Putz... Olha o trabalho que dá pra por na cabeça da mulher que o buraco é mais embaixo! Agora eu pergunto: Quem vai ensinar a mulher a ver as coisas de forma diferente? Como? Até pq, se a maioria está errada, e vc vem com o "certo", logo o seu "certo" torna-se o "errado", e o "errado", vai ser democraticamente votado como o certo, rs...

    Olha, o que quero dizer é bem explicado com o conto "O Homem de Cabeça de Papelão", de "João do Rio", que, inclusive, está nos vídeos do meu Orkut, interpretado por Maria Luiza Mendonça, que é uma gata, quando interpreta isso.

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  3. Pois é, Igor. Mas aqui estou falando mesmo de gente moralista hipócrita, elitista, e cheia de grandes verdades que já estão consolidadas em suas cabeças há muitas e muitas gerações. Mas sei do que você fala - de gente que se esforça pra ser sensível e não tem chance de parar pra pensar um pouco. O problema dessas faxineiras, cozinheiras, inspetores, secretários, e muitas vezes até diretores, é que não se pensa que sejam educadores. Na rede municipal, eles recebem um nome engraçado: "equipe técnica". Então, quase nunca falam sobre educação sobre eles - e tome-lhe clichês...
    Beijos!

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  4. Não consigo escrever outra coisa a não ser:
    -Que merda!

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