sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Da Cultura Escolar (ou como o ser humano é feito pra ser melhor que isso que andam querendo que ele seja)

Resumo, inicialmente, a vida escolar da minha filha, sem me alongar porque o assunto dá muito pano pra manga. I. passou seis meses, desde um ano e três até um ano e nove meses de idade, num berçário particular, meio período, sem maiores problemas. Tinha um ano e dez meses, já andava com muita segurança e falava frases, quando tornou-se educanda do Projeto Piá, público e gratuito, comprometido com a educação para a emancipação, localizado num espaço também público. Ela tinha quatro anos quando o coletivo de educadores desse projeto entrou em crise, e, com a saída das educadoras mais antigas, mudou substancialmente sua linha "política e pedagógica". Então, aos quatro anos, I. foi matriculada numa EMEI perto de casa - a Gabriel Prestes. Não se adaptou ao tratamento recebido ali, adoeceu, eu adoeci junto. Fui até a assistência social da Universidade de São Paulo, expliquei a situação, chorei, e conseguimos matriculá-la no creche da USP. Melhor dos mundos possíveis, ali a I. foi muito feliz, e teve um desenvolvimento emocional, intelectual, físico, muito acima até do que eu esperava. Baseado, eu acho, no respeito ao universo infantil, às suas particularidades emocionais, à sua imaginação, e, sobretudo, à sua inteligência, à capacidade das crianças levarem as coisas a sério quando são levadas a sério.
Mas a experiência com a Gabriel Prestes, que eu ainda pretendo relatar em detalhes, continuava a ser um fantasma, pois me atormentava o problema de como seria cada ano, cada professora, quando I. ingressasse no ensino "fundamental".
Então, inscrevemos a pequena para o sorteio da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação, e torcemos muito, e ficamos realmente muito felizes ao ver que ela foi sorteada, pois tínhamos certeza de algumas coisas que pareciam insubstituíveis: não é uma escola particular, ou seja, não se apresenta à criança um universo social absolutamente alheio à realidade brasileira. Além disso, o ato educativo ali, pela mesma razão, está fora da relação mercadoria, ao menos no tocante à "clientela". Por último, e, infelizmente, mais importante, porque sabíamos que ali não haveria problemas da ordem dos que encaramos na rede municipal ou estadual (tais como a brutalidade ou a inação por parte dos adultos).
Assim, antecipou-se em um ano a saída de I. da creche-oeste, experiência de formação tão feliz, em troca de garantir os restantes oito anos do ensino fundamental e três do médio numa escola digna. Intuitivamente, resolvi prevenir minha filha de que, de um jeito ou de outro, agora seria uma "escola", que a escola é obrigatória e ela não ficaria para sempre na creche, que portanto não poderia ser como era a creche, mas que era uma escola bem legal. A referência de "escola" que ela tinha, entretanto, era a EMEI Gabriel Prestes (onde ela tinha que ficar sentadinha, quietinha, sem "atrapalhar" e nem fazer p. nenhuma). Então ela ficava me perguntando: "Mãe, será que não vai ser que nem a EMEI Gabriel Prestes?" , e eu explicava que não, isso não precisa te preocupar, filha.
De fato, depois de ter chorado bastante quando soube que "amanhã tem aula", depois de ter ido pra escola com o pé e a mão atrás, ao final do primeiro dia de aula a menininha era só alívio: "Foi ótimo, gente, vocês tinham razão. Conhecemos isso e aquilo, faltou conhecer a biblioteca, vamos amanhã" e tal.
Ufa. Parece que vai ser mais fácil e menos sofrido do que eu havia imaginado. Vai assim um dia, dois, algum contratempo em relação à questão da entrada, uma amiguinha que aparece e espera a I. pra entrarem juntas de mãos dadas, as coisas se encaminhando. Eu penso: realmente, a I. é adaptável. Para ela não se adaptar, a coisa tem que ser feia - se tem algo interessante pra fazer, a possibilidade de ser ouvida e segurança emocional, pronto, ela está tranquila.
Até que, no terceiro dia, depois de algum tempo conversando sobre outros assuntos, sem nenhuma grande angústia aparente, apenas uma nota de decepção na fala:
"E aí, filha, como foi na escola?"
"Médio."
"Como assim?"
"Uns meninos na classe ficaram brigando."
"Mas isso é comum."
"E aí a professora, e aquela pessoa lá, a que mostrou a escola no dia da entrevista..."
"A Luciana?"
"É, a Luciana falou que nessa escola isso é proibido. E que quem não entender que é proibido vai ter que entender de outro jeito. Vai ser levado pra direção, e ali eles vão explicar muitas vezes, durante muito tempo..."
"Entendi."
As crianças têm cinco anos, e já estão sendo ensinadas a, quando realmente precisarem de atenção, procurar a diretoria - que ali, meus queridinhos, não tem pra todos não. Mais que isso, o sentido de estar ali vai ser encontrado na diretoria, e mais que isso, não como uma parte do processo com a qual a criança se sente envolvida, mas como punição, como ameaça. Minha filha, acostumada que está a ser levada a sério por seus educadores, simplesmente não entendeu patavina. Mas intuiu que alguma coisa estava assim, "pobre e simplória", assumindo a linguagem dos filmes infantis, ou, melhor ainda, "probrecicróis", como costumamos dizer.
Vamos imaginar esses meninos daqui a uns cinco anos. Aprontam, porque querem ir para a diretoria, encher a paciência - já que logo eles vão descobrir que a atenção que procuram é lá que conseguem. Os outros, os dóceis, não vão aprontar, porque vão ter medo de "ter que entender de outro jeito", seja lá o que isso for. Mas isso não quer dizer que necessariamente terão conseguido toda a atenção e consideração que almejam, mas que, pelo contrário, aprenderam que estão errados em querer mais do que se lhes oferece. E por acaso tem como ser de outro jeito, se uma mulher passa quatro horas e meia com trinta crianças de cinco anos? Acho que não, mesmo.
E o ensino é obrigatório, e como tudo o que é ruim pode piorar muito, agora são nove anos obrigatórios, e tem gente querendo que sejam doze, ou seja, a questão da qualidade, na prática, está totalmente suspensa até segunda ordem.
Eu, para piorar, não podia deixar a I. pensando que está sendo diariamente entregue aos incapazes, ou seja, não podia me indignar junto com ela. Então, falei:
"É assim mesmo, filha. Na escola tem muita gente, então as pessoas precisam entender como as coisas funcionam logo, e só a professora nem sempre consegue explicar pra todo o mundo." Mas como ela tinha entendido que o discurso era mesmo na base do medo, que de besta ela não tem nada, eu falei ainda, com ela e com o pai dela, que pior que uma escola onde os bagunceiros têm medo da direção é uma escola onde ninguém respeita nada, porque sabe que nada acontece nem na direção nem em lugar nenhum, e os bagunceiros governam.
E que no fundo não precisa ter medo, porque ali na escola onde ela está, na direção ou em qualquer lugar, as coisas vão ser sempre resolvidas com conversa, e é só estar disposto a conversar a sério.
É o que tem pra hoje.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Primeiro dia de aula

Ontem foi o primeiro dia letivo da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo. As crianças empoleiradas nas listas das classes, para ver com quem passarão os próximos 199 dias letivos, qual será a sala de aula, quem serão os professores... A G., da oitava série, minha aluna desde a quinta série, com a unha pintada de rosa cintilante; sua colega com máscara de cílios; os meninos com os tênis limpinhos...
Entro na sexta série ah, que não foram meus alunos na quinta série mas que já levaram muita bronca minha no teatro e principalmente no corredor das salas de aula. Eles me viam e saiam correndo [eu adorava isso!!!]. Paro na porta da sala, com cara de pouquíssimos amigos, como se dissesse: "Enquanto todos não se sentarem e ficarem em silêncio não entro!". E fui prontamente atendida. Finalmente eles teriam aula com a tal professora brava de Geografia. Os olhinhos deles brilhavam, muita expectativa depositada na figura do professor, que na maioria das vezes os decepcionam. Então me apresento, peço para que façam o mesmo, listo as regras da escola (elaborada pelo coletivo de professores e direção), depois listo as minhas regras, as cinco regras da aula de Geografia, eles ficam surpresos, e quando chego no ítem cinco, "proibido falar palavrões", espanto geral, explico também que as pessoas devem se tratar pelo nome próprio, que o respeito entre eles começa pelo chamamento e que vai até o modo como tocam o corpo do outro "meninas e meninos só podem tocar no corpo do outro se houver permissão e tem "certos toques" que não são permitidos na escola". Todos, todos deram uma risadinha no canto da boca, tipo "entendemos, não precisa dar exemplo".
Faço alguns testes para ver o que a anta do professor do ano anterior "ensinou", descubro que foram coisas com muita sequência lógica, tipo espaço geográfico, lixões, região, natureza... Pergunto: vocês sabem reconhecer as principais projeções cartográficas?, sabem localizar pontos na superfície terrestre através das coordenadas geográficas?... e nada. O mínimo não foi tratado, mas as questões que passam no Fantástico, ou então no Globo Repórter sim. Eles se desesperam, a ponto de elaborarem perguntas assim ó: "Mas a gente nunca vai poder saber isso que a senhora falou?". São acalmados.
Já estou empolgadíssima. Eles são muito fofos.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Pedagogia do Palhaço

Só uma rapidinha, pra contextualizar... estou fora de sala de aula, provavelmente por dois anos. O blog tem o intuito de servir pra troca de experiências sobretudo de salas de aula do ensino público fundamental, mas eu vou continuar falando das experiências que tiver, ou através da minha filha, ou da experiência "acadêmica" mesmo, seja lá o que isso for.
Então, retomando as postagens: hoje conheci um rapaz na faculdade que tem uma formação pedagógica prática e autodidata (é claro, aprendeu também com seus pupilos, mas só tardiamente recorreu aos mestres). Ele é artista, e me falou coisas muito interessantes. Falou, por exemplo, que o professor é um ator, e que o ideal é que faça isso conscienciosamente. Eu pensei na personagem que, dando aulas na rede, construí - essa tal "professora Eulália". Lembrei do início da separação (parcial) entre eu e ela. Lembrei de quando ia encarar meus alunos totalmente sem máscara, e de como as conversas com profissionais mais velhos havia contribuído para, aos poucos, não me envolver tão visceralmente, tão sem mediação. Comentei com ele que tenho uma coleção de guarda-pós. Comentei também sobre quando, alguns anos atrás, uma professora mais experiente me aconselhou a não gritar, não vociferar - ou, ao menos, antes disso, observar os alunos com certo ar de desprezo, longamente, pois esta conduta provocaria reações mais interessantes, um aluno cutucaria o outro, o grupo sentindo que algo se esperava deles, mas tendo tempo, chance de tentar fazer algo para corresponder à expectativa, ao contrário dos berros, mais comuns e menos efetivos. Esse moço ficou assustado, e , ao que parece, não entendeu muito bem a estratégia. Disse em resposta uma frase muito forte:
***
"Se você vai criar uma personagem, ela tem que ser, PELO MENOS, um pouco melhor que você."
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Mas o que mais me marcou foi ver o brilho que esse cara tinha nos olhos, quando falava do seu trabalho. Só não entrei em crise porque já estava desde antes... Vocês certamente me entendem.