sexta-feira, 29 de maio de 2009

Pedagogia: Ciência, Senso Comum e Bom Senso

TEXTO DA MINHA MÃE
(para a licenciatura em português que ela está cursando)
Já conhecia a história há tempos.
Adorei o texto.


"Dias atrás, li no jornal um artigo sobre o caso de uma professora da rede estadual de ensino que foi agredida por um de seus alunos e me dei conta de que fatos como esse têm sido veiculados com freqüência pela mídia. Pensando que, cerca de trinta anos atrás, eram professores que agrediam alunos, lembrei-me de um episódio da minha infância que me marcou para sempre.
Iniciei os estudos em 1964, com quase oito anos de idade. Era o início da ditadura militar. Naquele tempo não havia creches e as crianças só entravam na escola com sete anos completos; como nasci no mês de abril, tive ainda mais atrasado o meu ingresso escolar. As classes eram mistas, uma mudança recente, pois antes, meninos e meninas estudavam separados. O Brasil tinha acabado de fazer uma reforma ortográfica e por isso o ambiente de aprendizagem estava confuso: enquanto os professores ensinavam a nova ortografia, a antiga ainda estava presente em muitos livros e materiais impressos.
Eram tempos de disciplina rígida e a sociedade ainda admitia o velho conceito bíblico de “educar pela vara”. Não raro, crianças apanhavam dos pais e, mesmo na escola, essa prática ainda era aceitável. Eu mesma presenciei muitos puxões de orelha em crianças com dificuldade para entender as lições e ouvi, certa vez, a mãe de uma coleguinha dizer para a nossa professora: “Se for preciso, a senhora pode bater.”
Estávamos no início do ano letivo de 1966. Eu cursava então o terceiro primário. Nos dois primeiros anos, as crianças usavam lápis e borracha, mas agora, iríamos usar caneta, uma grande responsabilidade, afinal ainda não existiam os corretivos e o caderno, é claro, tinha que ser muito caprichado, muito bem feito.
Minha professora, Dona Maria Luiza, era uma moça bonita, de pele, olhos e cabelos claros. Tinha vinte e três anos – minha memória a congelou nessa idade. Havia pedido para providenciarmos uma caneta azul, para escrever o “ponto” - assim era chamada a matéria de estudo, e uma caneta vermelha, para escrever o “título do ponto”.
Antes da aula, passei na venda do Português, onde minha mãe comprava a prazo. Perto do caixa, entre balas, chicletes, cigarros, fósforos, isqueiros, havia umas canetas Bic penduradas num barbante, mas só três ou quatro, e todas vermelhas. Então pedi uma, que o Português marcou na caderneta, e eu fui para a escola.
A professora começou a aula pedindo que abríssemos o caderno e escrevêssemos o cabeçalho – o nome da escola, da cidade e a data. Depois, ela ditou o título da lição:
_ “O Esqueleto”.
Andando entre as carteiras, lia pausadamente a matéria para que fôssemos escrevendo:
_ “O corpo humano é sustentado por uma estrutura óssea composta de...”.
Tudo era novidade aquele terceiro ano. Eu anotava, com minha caneta vermelha, única, muito preocupada em fazer uma letra bonita.
Dona Luiza entrou na minha fileira. Olhava cada carteira, de um lado, de outro, supervisionando os cadernos das crianças. Quando chegou ao meu lado, teve uma reação súbita: arrancou da minha mão a caneta e, quando a olhei assustada, deu-me um estalado tapa na cara; tão vigoroso que minha face ficou dormente. Diante do meu espanto e, vendo-me desabar em choro, começou a se “explicar” aos gritos:
- Eu não disse que a caneta vermelha era somente para escrever o título? E... blá, blá, blá... – continuou vomitando.
Humilhada, miúda nos meus nove aninhos, senti-me ainda mais “pequena”. Meu rosto ardia, pelo tapa e de vergonha.
Voltei para casa com os olhos vermelhos e minha mãe quis saber o motivo. Ainda muito abalada, contei-lhe, entre lágrimas, sobre a injusta bofetada. Tentou acalmar-me, quis saber detalhes, e por fim, resolveu que no dia seguinte me levaria à escola e falaria com a professora.
Minha mãe não tinha o primário completo, mal sabia ler. Nunca tinha tempo para as reuniões da escola, pois passava o dia no tanque, no fogão, na máquina de costura, sempre ocupada com as tarefas domésticas, e ainda, para ajudar no orçamento, fazia flores de papel para vender. Mas, no dia seguinte, foi comigo para a escola.
No pátio, envergonhada com aquela situação e com medo da professora, eu segurava firme na mão da minha mãe. Tocou o sinal e as crianças correram para formar filas, por turmas, para cantar o hino nacional e depois seguirem com as professoras para as salas de aula. Minha mãe esperou terminar aquele ritual patriótico e então se aproximou da minha professora e perguntou:
- A senhora é a Dona Maria Luíza?
- Sim – disse a moça, sorrindo.
- Eu sou a mãe da Deise, vim porque ela apanhou ontem da senhora.
- Ah, sim. É que eu expliquei sobre o material, mas ela não entendeu. - Esclareceu a professora.
Minha mãe retomou:
- Minha luta é grande, em casa, com as crianças. – e prosseguiu:
- Também não me importo quando meus filhos tiram notas baixas, mas, de comportamento, exijo sempre nota 100, no boletim.
A professora olhou para mim com um sorriso meigo e disse, querendo nos consolar:
­­- Sua filha é uma boa menina, isso foi apenas um incidente.
Então minha mãe parou um instante para pensar. E reformulou:
- Quantos anos a senhora tem, Dona Luíza?
- Vinte e três – ela respondeu.
- Pois é! Eu tenho quarenta e quatro – retomou minha mãe, com firmeza. - Tenho seis filhos e nunca precisei levantar a mão para educar nenhum deles.
Acho que naquele momento a professora se deu conta da superioridade pedagógica da minha mãe.
- Estou aqui para lhe dizer que a Deise tem mãe. E que nunca mais bata na minha filha! – completou.
A moça se desculpou, constrangida. Confesso que naquele momento, meu constrangimento também era enorme e que durante todo aquele ano não me senti bem nas aulas.
Mas nos anos seguintes, à medida que eu crescia, a imagem da minha mãe, que hoje já não vive entre nós, foi crescendo sempre para mim. Agora ela é gigante.

São Paulo, 10 de maio de 2009 "

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