quarta-feira, 6 de maio de 2009

Recomeçar...

Bom, pra além dos recomeços de nossas vidas, de ciclos que se encerram e se iniciam, dos planos que temos que fazer - e executar, do ano do búfalo, difícil e profícuo, quero recomeçar a conversa.
Sei que não deve ter ninguém lendo isso aqui, espaço que andou deixado de lado, mas os assuntos voltam a povoar a mente, e de algum jeito é preciso que eles fiquem registrados, que marquem presença na nossa história, e que saiam de dentro das cabeças - elas já têm muito o que guardar...

Antes de mais nada, apenas um registro pessoal:
Feliz Aniversário, Dom R. C. que-não-atende-telefone-nem-em-dia-de-aniversário!!!!

Profim do ano passado, me recordo que as conversas iam me levando pra uma reflexão sobre os modelos de escola. Escrevi até uma postagem sobre a escola católica (pública) em que trabalhara. Tinha ficado me devendo uma pequena historinha sobre a escola seguinte, positivista, dura, laica em linhas gerais, e que rezava o credo da dominação burguesa sem maiores dramas de consciência. Outro conteúdo para a mesma forma escolar. Tem vários causos que ilustram o que quero dizer. Começo pelo tempo...

Escola Industrial
Pois é. Meu drama na escola católica se referia a um ícone pregado na parede, em cima da lousa, na direção para a qual se voltavam os olhares das pessoas. Ali, disposto como em um templo sagrado, como um aviso, ao mesmo tempo objeto de adoração. Aliás, a forma como estão dispostos os corpos na sala de aula também é a mesma do templo sagrado.
Aqui, na escola laica, não era diferente: o ícone estava disposto no mesmo lugar, ao centro e à frente, acima do professor no campo geral de visão, dotando o espaço de um significado particular. O ícone, aqui, era um objeto técnico - um relógio.
"Senhora Eulália", me perguntará o ilustre interlocutor, "não estarás a cometer um certo exagero? Afinal, os relógios têm, ao contrário das imagens religiosas, uma utilidade prática! E os alunos precisam aprender, entre outras coisas, a administrar o tempo..."
Bem.
Por partes. Se os alunos realmente precisam administrar o tempo, toda a disposição de seu tempo e de seu espaço é absurda. O dia de cinco horas está totalmente rasgado em sete partes de tempo, seis aulas e um intervalo, cujo controle absolutamente independe do que façam ou deixem de fazer os alunos. O espaço (a igrejinha) já sinaliza que o adulto ali na frente é quem tem que ser visto por todos - e quero sublinhar que nesta disposição de tempos não poderia ser de outra forma (pois fico me lembrando de tentativas que já presenciei de, nas mesmas aulas, de quarenta e cinco minutos, com trinta e cinco alunos e o currículo vigente a ser cumprido, a escola tentar colocar os alunos olhando uns pros outros... Só várzea! Delírios pedagógicos!!!).
Aqui, estou apenas tentando deixar claro que é mentira que a criança tenha qualquer chance de salvar sua subjetividade diante do tempo. Todo o tempo e todo o espaço explicitam que ela precisa seguir, e não administrar o tempo. Adminstrar o tempo implica entender o que se está fazendo ali, ter a mínima noção de como se fará, de onde se prentende chegar a cada dia, a cada mês, a cada ano. Quer dizer, administrar o tempo pressupõe uma postura ativa. O tempo e o espaço das nossas escolas são, para os alunos, definidores de uma postura passiva.
Assim, se é, evidentemente, mentira que os alunos aprendam, em sentido lato, com os malfadados relógios, vamos nos debruçar sobre a questão seguinte: para quê e a quem servem? E precisamente, no lugar em que ficam?
Servem como ícone. E transmitem, possivelmente, a seguinte mensagem: todos aqui somos governados por uma temporalidade externa às nossas subjetividades. Nós, adultos, não estamos aqui massacrando vocês por puro sadismo. Nós também somos massacrados, por essa entidade que paira sobre todos nós, e à qual também devemos obediência irrestrita. E aqui à frente e acima está o seu representante, o seu enviado entre nós, para que, a cada segundo, nos lembremos de que o tempo não nos pertence.
"Dona Eulália, a senhora já pensou em procurar tratamento psicológico?", é certamente o que dirá o meu caro interlocutor. E eu responderei: Esta não é a questão. Eu não cheguei a estas conclusões todas simplesmente observando os relógios nas paredes, mas sim a sua pedagogia em ação.
Foi triste, mas não vamos chorar.
Era assim: sempre naquele afã de falar e de ser ouvida, diante da generalizada dispersão estudantil, me parecia recorrente que, aos trinta e cinco minutos os estudantes se acalmassem, parassem, olhassem para a frente, e deixassem a aula fluir durante dez minutos. Convenhamos, dez minutos de aula é muito pouco, mas já seria alguma coisa se existisse uma real escuta por parte de todos durante aquele tempo. O que me parecia sempre estranho era como, ao ouvir o sinal, de repente, os alunos (aqueles malcriados, pensava eu), me subtraíam toda e qualquer licença para continuar falando. O conteúdo do pensamento, magicamente, se tornava irrelevante ao toque daquele apito. Com o tempo, aquilo além de me chatear - pois era a informação, repetida seis vezes ao dia, cinco dias da semana, quatro semanas do mês, de que o que eu tinha a dizer absolutamente não interessava - foi me deixando brava. Então, na qualidade de educadora que eu tentava ser, decidi que aquilo não podia ficar assim. Se a aula não interessa, vou ensiná-los a fingir que sim, por educação! E além disso, pensava eu tentando me consolar, sempre pode existir alguém ouvindo e gostando - e, neste caso, a interrupção repentina é indelicada também para este alguém. Ótimo, decidido. Os alunos estão proibidos de berrar, levantar ou interromper a professora de qualquer forma ao simples toque do sinal. Então, o sinal tocava e eu dizia, ou melhor, gritava: "EU NÃO SOU UM ROBÔ!" "Quem pára com o toque de um botão é máquina. Vocês querem ser robôs ou gente?" "A aula acaba quando acabar, não quando um botão fizer soar uma campainha." E, em última instância, "Quem manda aqui sou eu!!!!!!!!", que naquele caos, exigir tanta coerência de si também pode deixar a pessoa doida...
Pois bem. Aos poucos os meninos e as meninas foram entendendo que eu realmente não gostava do jeito que nossas aulas acabavam, e como as crianças se moldam muito aos adultos que têm como referência, passaram a fazer muito esforço para controlar a vontade irresistível de jogar livros e cadernos para o alto, berrar e sair pulando da cadeira quando soava o alarme do fim da aula. Mas a explosão contida às vezes pode chatear mais que a explosão praticada, porque mesmo tendo escolhido ser professor, o sujeito pode ainda ter um tiquinho de dignidade. E é chato ver que os alunos disfarçam por pura consideração, mas continuam desesperados pelo fim da aula...
E no entanto, parecia contraditório, para a minha ingenuidade, que justo depois daqueles dez minutos em que pareciam estar tão compenetrados, olhando tão atentemente na minha direção, e com concentração cada vez maior...
Até que entendi:
O relógio.
Era para o relógio que as crianças olhavam durante aqueles dez minutos, e não para mim!!!
A compenetração era acompanhando o passar do tempo, vazio, e ia aumentando conforme se aproximava o esperado fim - do vazio. Nenhuma daquelas pessoas tomava o menor conhecimento de nada que eu dizia. O fenômeno era claro, pois na sala da quinta série o relógio ficava na parede de trás, não sei porque cargas d'água, e ali, mais de uma vez, os alunos avançaram na aula junto comigo, inclusive invadindo o seu intervalo, por exemplo, enquanto cantávamos, mas também em aulas expositivas.
É claro que a primeira coisa que passei a fazer, daí em diante, foi entrar nas salas, subir numa cadeira e tirar os relógios das paredes! Assim foi como descobri o grande apego sentimental que as crianças já haviam desenvolvido por aqueles objetos. Invariavelmente, os retirava sob uma chuva de lamúrias e até ameaças "professora, pooooor favooooooor, não faça isso" "não, não, não!!" "professora ladra, roubando o meu relógio!" "vamos contar na diretoria!" etc. etc. etc.
É claro que eu mesma já havia tentado, sem êxito, contar na diretoria e na coordenação o que havia percebido. Portanto, estava torcendo pra que os alunos fossem falar com alguém e de alguma forma a questão se colocasse para a escola como um todo. Então, só respondia a cada vez:
"Será que vocês nunca vão perceber que quanto mais bravos vocês ficam, mais eu me divirto?"
E se alguém, em algum dia muito especial, me perguntava a sério porque eu tirava os relógios, eu respondia com prazer, inclusive encenando as caras que eles faziam olhando para o dito cujo e a alegria com o final da aula e com o sinal. Então, aos poucos eles viram que podia fazer sentido. E de fato, a concentração ilusória dos dez minutos finais desapareceu, e com ela o alívio geral pelo fim da aula.
O que, por outro lado não parecia fazer muito sentido era que eu ia todos os dias, de sala em sala, tirando os relógios das paredes. Levava todos, todos os dias, para o meu armário. Mas nem todos cabiam no armário, então, no outro dia - pimba! Lá estavam os relógios outra vez. E toca a professora Eulália doidona, tirar o relógio da parede de novo, e os alunos de novo reclamando, enfim. Até que um dia. Os relógios começaram a sumir de verdade, alguém estava aproveitando para roubá-los (será?). Então, a diretora me chamou, com todo o jeitinho, como quem toca num assunto-tabu (qual seria? a autonomia docente? a nossa incapacidade de resolver as questões pedagógicas coletivamente? minha sanidade mental? ou será que ela pensou que eu estivesse roubando os relógios??? HAHAHAHAHA!!!)
"Eulalinha, querida, por favor, será que você poderia parar com esse negócio de mexer nos meus relógios?"
(Então afinal eram dela, os relógios!)
"Olha, Gisele, a questão é tal e tal, os relógios atrapalham a aula, eu tenho tentado falar nisso, ninguém encaminha o assunto, muito menos uma decisão, etc. etc."
(ela me olhando com uma expressão de infinita condescendência)
"Eulália, não dá pra mudar essas coisas no meio do ano, pro ano que vem, talvez, a gente pode pensar em pendurá-los no fundo das classes... Mas agora, não leve mais os relógios, que eles andam sumindo, etc. etc. etc."
"Tudo bem Gisele, não quero que suma nada que custa dinheiro." Pura mentira, queria mesmo que todos aqueles relógios sumissem, só de raiva. "Vou apenas retirá-los ao início das aulas, e ao final eu os reponho. Mas você promete que ano que vem eles estarão no fundo das salas, por favor?" (assumindo o mesmo tom carinhoso, como se estivesse pedindo pra ela mais um pouco de paciência com minhas excentricidades, como esse negócio de querer que o espaço tenha algum sentido comum à atividade que nele se realiza...)
Mas ela prometeu.
Um amigo professor e artista me sugeriu uma pequena intervenção nos referidos objetos técnicos. Ele sabe mexer na engrenagem e inverter o sentido dos ponteiros. Deixei esta ação direta para as próximas oportunidades...

Nenhum comentário:

Postar um comentário