sábado, 15 de novembro de 2008

Mais Uma Terça Feira


Mais uma terça feira na Escola Estadual Antônio Qualquer Coisa, e a inspetora Noêmia roda o molho de chaves no dedo indicador da mão direita, caminhando em direção ao portão de entrada das crianças. “Plah! Plah! Plah!”. Antes de por as mãos no cadeado, já escuta o barulho de tapas ansiosos, no latão pintado de verde. Respira fundo, fecha os olhos, faz uma breve prece pro gerente das religiões cristãs, e pensa consigo: “Hoje vai ser um daqueles dias...”. Todo dia ela pensa isso. Ao abrir a passagem, jorra em fluxo violento um rio de alunos agitados, falando alto, cantando, dando estrelinha, e trocando chutes amistosos que viram no último filme da Seção da Tarde. Tirando o barulho, é uma das cenas mais bonitas que a Dona Noêmia presencia durante a semana, e ela sabe disso. Fica ali parada, segurando as chaves, olhando o relógio, e com um tímido sorrisinho costurado no rosto. Dez minutos depois, fecha o portão, tranca com o cadeado, conduz as turmas para suas respectivas salas, e desce para o pátio, onde ficam os alunos da quinta série, todos sem aula, porque a professora de ciências tirou licença-alguma-coisa. A Dona Noêmia senta os oitenta por cento de nádegas, nos cem por cento de banco do pátio, abre o mini manual de instruções de páginas rosas, e começa a ler algum dos seus salmos preferidos.

Lá do outro lado do colégio, perto da quadra, onde há uma cerca daquelas de metal, tipo um tecido costurado, o grupinho da rua de cima dá um jeito de abrir um buraco bastante conveniente para a entrada na escola. Enquanto a Dona Noêmia molha na língua a ponta do indicador da mão direita, e vira as páginas rosas, os moleques vão abrindo a passagem, e entrando um a um, se misturando com os garotos da quinta.

- Dona Noêmia! Dona Noêmia! O Eduardo tá passando mal!!!

A inspetora fecha o livro, estica a coluna, levanta as sobrancelhas e vai correndo atrás do menino:

- Eduardo! Eduardo! O que você tem, meu filho, o que você fez?! – pergunta Noêmia, puxando pra baixo os olhos do menino tonto, com seus dois polegares.

- Liga não, tiazona, é que ele cheirou cola, mas é fraquinho. Daqui a pouco ele volta... – Diz um outro garoto sem camisa, com uma garrafinha de Coca-Cola vazia, na mão, e mochila preta nas costas.

- Quem é você, menino?! Qual a sua turma?! Que é isso de cheirar cola?! Vão vir todos vocês AGORA pra diretoria comigo! Anda! – irrita-se a inspetora, lembrando, inconscientemente, de que lá na Escola Estadual Padre Sei Lá Das Contas, na Bahia, na época em que ela tirava dez em geografia, não existia essas coisas no pátio do colégio.

Foi um total de, mais ou menos, cento e quarenta dentes, alguns brancos, outros cariados, outros só o espaço na gengiva. A questão é que estavam divididos entre cinco bocas, e todas elas rindo da inspetora, mostrando todo o desdém do poder que um jovem revolto de quinze anos possui, ao invadir o colégio alheio. Dona Noêmia pegou o pequeno Eduardo pela mão, levou até a direção, e esbravejou que não dá pra dar conta “daqueles nóias” sozinha, como ela diz. Conclusão: Subiu o diretor com sua voz imponente, a moça da faxina, com cara de má, e a própria inspetora, apontando quem eram os garotos. Quando o diretor gritou, eles gritaram também:

- Vai se foder, sua bichona! Hahaha!

- Tira a gente daqui então! Hahaha!

- Blablabla, seu %#$@!

O diretor gritou de volta:

- Eu vou chamar a polícia agora!!!

E desceu pisando rápido e pesado, pra sua sala, em direção ao telefone. Rindo, três deles fugiram pela quadra, um pulou o portão de ferro, e o outro... O outro perdeu a festa, porque estava fazendo um xixizinho rápido no banheiro, enquanto tudo aconteceu. A inspetora não perdeu tempo: uniu todos os seus ensinamentos cristãos, colocou todos no bolso da bolsa, e foi correndo trancar a porta do banheiro com o menino dentro. O menino esmurrou a porta, quebrou o rodapé, gritou todos os palavrões que conhecia, usou toda sua criatividade para fazer ameaças, até a ronda escolar chegar ao local. Quando isso aconteceu, os policiais pegaram o garoto, levaram pra delegacia pelo colarinho, levantaram a ficha, fizeram a ocorrência, confiscaram a garrafinha de Coca-Cola, nem tão vazia assim, e conseguiram uma semana de hospedagem para o jovem, na Fundação para Menores Doutor Fulano da Costa.

Depois dos sete dias, o menino saiu de lá, e foi direto pra rua de cima, contar sobre sua aventura. Ganhou a admiração de umas meninas, ficou com fama de mau, cresceu na hierarquia do grupo, diminuiu ainda mais as chances de uma vida mais digna para os próximos anos, e voltou pra porta da mesma escola.

Mais uma terça feira na Escola Estadual Antônio Qualquer Coisa, e a inspetora Noêmia roda o molho de chaves no dedo indicador da mão direita, caminhando em direção ao portão de entrada das crianças...

4 comentários:

  1. Post Scriptum: Este blog me deixa tenso na hora de postar.

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  2. Teus textos têm muita força, Igor. É que, além de talento, você tem a sensibilidade para estar de corpo e espírito presentes num lugar onde os adultos, infelizmente, em geral são mortos-vivos. Por favor, escreva sempre!
    Beijos.

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  3. Lógico, escreva sempre!
    Essa coisa de entrar gente de fora é muuito complicado... Um cara que leva droga pra escola, não pára de insultar os funcionários, agressivo etc., na hora que o fato acontece é difícil tomar outra atitude a não ser chamar a polícia. Mas não adianta nada. O menino apanha dos policiais, vai preso, na detenção conhece mais gente nas mesmas condições ou mais malandros ainda, e o fulano sai ainda pior da prisão... Tá todo mundo despreparado...

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  4. Fora as loucuras,
    Muito bom o texto. Parabéns.
    Abraço

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