sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Gabriel, a lagartixa

Desde o meio do ano, formamos um grupo vocal na escola. Entre oito e doze meninas - já que a assiduidade não é o forte delas, raramente todas aparecem. Muito prazeroso para mim, apesar dos diversos percalços. Por exemplo, no mês de outubro, quatro dos ensaios (oito mensais, até então) foram cancelados por causa das eleições. Mais uns dois, graças à organização apressada de um campeonato na escola, e à conseqüente debandada dos alunos. Perdemos bastante o ritmo, as meninas estavam desanimando, eu também. Combinei uma conversa com elas, só quatro compareceram. Fiquei sabendo que muitas não se sentiam mais à vontade depois que certas garotas da sétima bê apareceram e, além de não levar a sério o trabalho, ficaram caçoando de quem o fazia. "Pagação de mico, professora". Todo um clima de suspense, de intriga, rumores. A atmosfera desta escola é assim: nada é simples. Tudo bem, vamos desistir, eu disse. É preferível desistir com dignidade, as pessoas assumindo que não querem mais e dizendo por que, a esse constrangimento de todo mundo meio envergonhado, meio sem coragem, enfim. Além do mais, com tão poucas meninas, não dá pra ter a apresentação de fim de semestre que havíamos combinado. Conversa difícil. Estávamos assim, sentadas no palco que fica no pátio, quando chegou uma moça muito querida da oitava série, a Célia:
"Professora, quando vocês vão se apresentar?"
(Que hora ela foi encontrar para fazer a pergunta, meu Deus!)
"Olha, Célia a gente está aqui justamente desistindo. Tem muito pouca gente."
A Célia adora cantar, tinha muita vontade de participar, mas desde o começo, não suportou justamente a tal "pagação de mico". Ficava trepada numa árvore na quadra, olhando a gente ensaiar, sempre morrendo de vontade de entrar na roda. Adolescente. No princípio, eu insisti um pouquinho, fiz chantagem emocional: "Célia, vem aqui, queremos você", essas coisas. Mas tem limite, tem que respeitar o espaço da pessoa. Então, depois de um tempo ela não apareceu mais. Engraçado: quando ela me escutou dizer que estava desistindo, ficou realmente muito incomodada:
"Não, vocês não podem desistir! Tem que ter pelo menos uma apresentação!"
"Mas isso seria expor as meninas, Célia. Me diga, se por acaso fosse você, teria coragem de cantar em número tão pequeno de coralistas?"
"Ah, não, professora, não pode! Então, porque vocês não apresentam só para os pequenos, de primeira a quarta? Aí, não precisa ter vergonha!"
Olhei para as meninas. Elas pareciam menos desoladas do que dois minutos antes. Tive medo de ser só impressão minha, não queria forçar a barra.
"Bom, o que vocês acham da idéia da Célia?"
Como fazem tantas vezes, elas esperaram que eu advinhasse.
"Olhem, eu não consigo ler pensamento. Quero que saibam que eu não me incomodo, respeito qualquer decisão de vocês. Mas se nós decidirmos fazer isso, temos que ter três ensaios semanais, com bastante assiduidade. E eu acompanho vocês com o violão, assim a apresentação fica valorizada - quatro vozes e um violão já é bem bonito."
Toparam, ficaram alegres. Nos ensaios seguintes o clima era diferente, as meninas já tinham em mente todo o tempo a tal apresentação. Avisei, durante as aulas de geografia, que ninguém mais entraria no grupo e que não haveria mais tolerância com quem não levasse a sério o trabalho. Fiz questão de usar a palavra desrespeito na classe em que estavam as meninas que haviam debochado. Então, todo o mundo voltou - inclusive elas, as engraçadinhas da sétima bê. Estas ainda me deixaram perplexa com tanta dignidade: chegaram para o ensaio, sentaram-se e ouviram a professora - muito brava - diante de todas as coralistas - muito mais bravas - perguntar: "Como assim, o que vocês vieram fazer?" Disseram que queriam participar. Então, em seguida, repetiu-se todo o discurso de que ali tal e tal condutas não poderiam mais ser admitidas, etc. etc. etc.
Ficaram, seríssimas. Duas princesas. De lá para cá, são as mais dedicadas. Muito engraçado.
Tudo isso para contar que o final foi um recomeço, e assim, como recomeço, colocamos algumas coisinhas no repertório para animar. E as canções foram tomando forma cênica - as meninas coreografam "As Mariposa", do Adoniran, eu tento dar umas dicas de como elas estão se dando a ver no palco, enfim. Finalmente, incluímos no repertório uma canção gravada por Antônio Nóbrega, o "Coco da Lagartixa". E, como eu sei que menina, via de regra, tem muito problema com a questão do ridículo (se um dia elas forem professoras, passa), sugeri que chamássemos um menino para ser nossa lagartixa. É claro, tinha que ser brincalhão e solto, mas não podia ser alguém incapaz de levar a sério a nossa disciplina, não poderíamos repetir o episódio tão desagradável da "pagação de mico". Pensei em alguns: Gustavo, Malcolm, Daniel, Caique...
Elas queriam o Gabriel.
O Gabriel é um aluno da sexta á, francamente descontrolado. Como, aliás, a sexta série á inteira. Doido de varrer, completamente lelé da cuca. Caso seríssimo. Em sala de aula, a cada três ou quatro segundos seu olhar está fixo num ponto diferente do espaço. Briga de mão, passa pelas outras pessoas e dá tapa na orelha, belisca, sai olhando pro outro lado, disfarça. Senta e se finge de comportado, o olhão arregalado. Só pára de verdade para ouvir leitura de história - para isso, todos param. Já conversei sobre ele com a minha coordenadora nos seguintes termos: não adianta chamar pai, não adianta suspender, não adianta mais brigar. O Gabriel tem que fazer esforço físico. Senão, nada feito.
Enfim, o Gabriel não dá, pensei. Nunca vai respeitar nada. Precisaria de alguns anos de um trabalho pedagógico diferenciado para ele virar gente. Mas também não podia dizer isso pras meninas. Então, tentei enrolar: "Tá bom, eu falo com ele daqui a uns dias, é melhor eu falar..." ("Falo é com outro, isso sim, que eu não sou tatu!").
Vocês sabiam que menina de doze anos lê pensamento? No dia seguinte, certamente por advinhar minhas intenções excludentes e anti-pedagógicas secretas, elas mesmas já tinham falado, ele já tinha topado, já tinham arrumado até uma menina-lagartixa, enfim... tudo dominado. É claro que ele topou, quando soube que alguns ensaios seriam em horário de aula ("Professora, por favor, me tira da aula da Romilda??!!!")...
Ensaio com Vicenza e Gabriel. Gabriel pega o pandeiro: tum tum, chictum, tum tum...
"Gabriel, quem te ensinou a tocar pandeiro?"
"Ah, professora, eu não sei tocar, não..."
(Hum.) Explicações. A canção é assim, a lagartixa entra assim, em tal tempo da música, sai em tal outro...
Gabriel encena: lagartixa bêbada, lagartixa com a saia na cabeça, lagartixa dançando coco que aprendeu a dançar em menos de dez minutos, e a tocar também. Vicenza, uma lagartixa princesa. Todos os dois ouvem tudo com atenção - a professora é mais chata aqui do que na sala. Nada de conversar com ninguém na platéia! Nada de ficar dando tchauzinho! Agora vocês não são mais Gabriel e Vicenza, são duas lagartixas! Gabriel, a lagartixa mais disciplinada que eu já conheci na vida.
Termina o ensaio das lagartixas, chega o coral. As lagartixas não vão embora. Gabriel pega um caxixi. Agora temos dois instrumentos de percussão em todas as canções - ele assume uma vaga no pequeno grupo. Num dado momento, as meninas reclamam: "O Gabriel está mexendo com a gente!"
Ensaio o olhar mais emputecido de que sou capaz. "Olhe para mim. Para mim!!! Será que você é capaz de se comprometer a respeitar as meninas nesta aula? Aqui não tem espaço para este tipo de atitude. Entendido?"
"Entendido". Pela primeira vez, percebo que ele ficou envergonhado.
Terminado o ensaio, as meninas debandam, Gabriel e eu seguimos com o nosso sambinha, tocando e dançando. Ele diz:
"Hoje, sabe qual é a primeira coisa que eu vou fazer quando chegar em casa?"
"O quê?"
"Tomar uma surra!"
"Ué, como assim?"
"Esqueci de avisar que ia ficar aqui..."
"Quer um bilhete no caderno, então?"
"É mesmo, professora, boa idéia!"
(Escrevo o bilhete.)
"Nada de chegar mais tarde, certo, Dom Gabriel? Estou aqui escrevendo o horário em que você saiu do ensaio..."
"Valeu, professora!"
"Tchau, querido."
****
As coisas andam assim, meio invertidas, sabem?

5 comentários:

  1. Tenho três lágrimas em cada olho...

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  2. pra mim isso é a felicidade... vida real melhor do que literatura e cinema

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  3. Muuuuito bom!! Parabéns professora!!
    Beijos

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  4. É, as vezes para se fisgar um bom peixe
    temos que trocar os anzóis...
    Legal, Amiga

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