domingo, 9 de novembro de 2008

Espaço e Sentido da Educação - I: escola medievalista

Quando era professora na EMEF Olavo Pezzotti, um dos primeiros grandes dramas foi este: as salas de aula eram ambientes, o que quer dizer que eu ensinava geografia o dia todo no mesmo lugar. À tarde, a mesma sala era ocupada por uma professora carola, daquelas que não dá nem pra saber se já chegaram a ver uma... Bom. Essa ilustre criatura pendurou acima do quadro-negro (ou melhor, do quadro-verde), duas imagens religiosas. Uma era Jesus-Cristo-Bem-Loirinho, cara de artista de cinema, triiiiiiiiiiste que dá pena (um dia desses eu vi uma representação de Jesus Moço Loirinho sorrindo, com cara de surfista. Achei da hora. Mas lá, não, ele sofria, como sempre). A outra, um anjo subindo aos céus, com umas trombetas, umas harpas, coisa muito da importante.
Nem precisa dizer que não dava, eu é que não ia ensinar geografia daquele jeito. Mas, assumindo alguns pressupostos que, depois eu soube, eram meros frutos da minha tola imaginação pedagógica, como o de uma equipe escolar que age num sentido comum, tentei incluir a discussão na pauta das reuniões. Manter a laicidade daquele espaço, pensava eu, não era uma questão competente apenas às aulas de geografia da professora Eulália. Se aquele tipo de apropriação do espaço fosse naturalizada, como se sentiriam os pequeninos que, eventualmente, fossem judeus, muçulmanos, seguidores do candomblé, ateus?
Daí se iniciava a seqüência de presepadas tão peculiares às repartições públicas. Começou assim: eu, muito bestinha, nova na equipe, tendo ingressado no meio de um semestre letivo, meio tímida e meio intimidada, ao invés de falar sobre o assunto, resolvi confiar numa pessoa que até então havia demonstrado bom senso em várias situações e, em tese, estaria numa posição mais confortável que a minha para conduzir um tema polêmico na reunião. Era a Coordenadora Pedagógica. Eu escrevi o tópico num papel da seguinte maneira: "sugiro incluir na pauta: imagens religiosas em sala". Resposta, igualmente num papel: "Pode deixar que resolveremos de maneira silenciosa".
Certo, pensei. Bom, acho que então a maluca sou eu, é isso. Vou esperar que a coisa se resolva de maneira silenciosa, deve ser o mais sensato. Mas, enquanto eu esperava, simplesmente não podia ministrar aulas sobre a origem do universo, o sistema solar, as características do conhecimento científico, sendo vigiada por Cristo e pelos anjos do Apocalipse. Então, para cooperar com a "solução silenciosa", como boa subordinada, eu chegava cinco minutos mais cedo que os alunos na sala, subia numa cadeirinha e - lógico - tirava as duas imagens e as deixava escondidinhas. Ao final do dia, colocava de volta - e pensava que no dia seguinte, se Deus quisesse, elas não estariam mais lá. Assim fiz eu, durante a primeira semana. E a segunda. Mas, lá pelo vigésimo dia, achei que a tal "solução silenciosa" havia sido tomada em prol da Santa Trindade. Então, pra ver o que acontecia, comecei a "esquecer" de colocar de volta na parede Jesus e os Anjos.
Ato contínuo, os rumores começam a se espalhar pela escola. Alguém anda tirando do lugar os quadros da professora Fulana. Logo ela, que se preocupa tanto em trabalhar valores, coisa fundamental, coisa tão séria. Daí, vou descobrindo aos poucos: o professor de matemática, que parecia tão diferente, todos os dias termina o período ligando o aparelho de som, eu chego, "que bonito, professor, um chorinho!", e ele: "ah, tem que sair da mesmice. Eu ponho todos os dias, um dia um choro, um dia um gospel, acho muito importante." E me dá as costas assobiando.
E, no corredor, umas expressões de desconfiança na minha direção. Não demorou nada, os alunos vieram também me perguntar, se Jesus me incomodava, se eu era contra. Não, eu sou cristã, respondia. Mas este espaço não é um templo, e a orientação religiosa da professora não pode preponderar sobre a de ninguém. E por aí a coisa ia.
Até que um dia, descendo as escadarias, deixei escapar numa conversa: "Ora, se a questão é de valores, vou pendurar uma foto do Che Guevara!"
Aí, lascou-se. Tenho até preguiça de tentar lembrar todo o potencial subversivo que minha pessoinha passou a simbolizar. Durante algum tempo, alguns não falavam comigo direito. Como bons fascistas, aproveitavam para se manifestar sempre que estavam em maior número. E sempre com as provocações mais baratas e irritantes. Ao menos para lidar com isso, eu sou bem treinada. As situações eram mais ou menos assim:
"O Lula, aquele analfabeto, você viu agora, que pachorrento, que desaforento?"
"Ladrão, ignorante!"
Aí as pessoas pensam que o esquerdista que está sofrendo assédio moral vai descer do salto. Não pode, nessa hora a gente não desce:
"Por favor, respeitem o meu querido presidente da República. Gostaria de lembrar que estamos numa democracia, ele foi escolhido por mais de cinqüenta por cento dos eleitores. Assim, esta agressão não se dirige a ele, mas à maioria da população brasileira."
"Com você eu não converso, você é ideológica."
E eu, com o máximo de cortesia, às vezes até com carinho:
"Nosso trabalho é coletivo por definição. Sua decisão incorre em carência de profissionalismo. Você não tem esta opção."
E assim se passaram as minhas últimas semanas naquela repartição, toureando de um lado os católicos progressistas dos anos oitenta, do outro os tucanos frustrados por ter que conviver com crianças pobres em troca da "estabilidade" funcional. E, caindo sobre a minha cabeça, os alunos - que só tocavam puteiro.
Saí de lá, pedi exoneração, fui fazer outras coisas. Voltei para a rede no ano seguinte, em outra escola. De lá, só queria algumas folhas de papel vegetal, e uns isopores que eu havia comprado para fazer maquete. Então, meio ano depois de tudo que contei aqui, dou de novo uma passadinha por lá...
A Coordenadora Pedagógica, nem um pouco surpresa com minha visita, como se tivesse me visto ontem, ou há duas horas, pergunta:

"Eulália, você esteve por aqui uns meses atrás?"
"Não, Fulana."
"Não, mesmo, tem certeza?"
"Absoluta. Estive aqui no primeiro semestre do ano passado."
"Tem certeza que você não sabe nada sobre as imagens religiosas que havia nas classes?"
(Havia?)
"Claro que não sei. O que eu vou saber?"
"Sumiram as imagens. Disseram que só podia ter sido você."
(!!!)
"Pode dizer que fui eu, em espírito! Tchau, Fulana!!!"

6 comentários:

  1. Nunhum cineasta seria capaz de criar estes diálogos e cenas.

    ResponderExcluir
  2. Oi Eulália

    Não sei se o Vamos Blogar seria o forum apropriado para discutir a questão que tu propusestes, pois é um blog temático\colaborativo.
    Te recomendo este:
    http://groups.google.com/group/edublogosfera

    para levar este assunto.

    abraços e obrigada pela visita!

    Suzana
    http://www.gutierrez.pro.br/

    ResponderExcluir
  3. "Você é ideológica", bem tipo "coisecaótica" ahahahaha

    ResponderExcluir
  4. Isso que é presença marcante! Mesmo depois de tempos passados ainda lembrada e presente na U.E!

    ResponderExcluir
  5. Oba!!! Tem uma bruxinha na área!!!!

    ResponderExcluir
  6. Cara, você faz de uma caneta, uma faca!
    Ou de um teclado, no caso.


    Gostei MUITO!

    ResponderExcluir