domingo, 23 de novembro de 2008

ciclo que se encerra

Talvez os companheiros ainda não saibam, mas estou fora de sala de aula a partir desta semana, creio que por dois anos, dedicando-me prioritariamente aos estudos e às nossas reflexões coletivas. Ao longo desse tempo, penso sim em manter a atividade pedagógica num nível laboratorial, mas pra isso preciso ainda encontrar alguém que tope fazê-lo comigo, ou por amor à causa, no tempo livre, ou que use a mesma estratégia que eu - dedique uma parte do tempo financiado pela universidade, em forma de projeto de extensão - formal ou informal, tanto faz.
Então, o ano letivo acabando, tive que apressar o final de semestre, deixando de lado algumas coisas que ainda faria, e antecipando outras. Em seguida, pedi a exoneração.
Não tive coragem de contar para as crianças que estava indo embora. Pedi às minhas colegas que não o fizessem. Ouvi objeções do tipo: "Mas não é melhor falar a verdade logo, você não acha chato ficar enganando as crianças?" Respondi, numa boa de verdade: "Não, não acho. Acho que na verdade a gente já engana, porque não há garantia nenhuma de que ano que vem serei eu a professora deles, qualquer professor da rede que chegar no concurso de remoção tem prioridade sobre mim na escolha das aulas. Além disso, faltam duas semanas para acabar o ano. O que tinha de verdade pra ser feito já foi feito. As crianças são sentimentais, eu também sou sentimental. Quero me despedir deles com alegria, levar e deixar uma lembrança boa, e não sair como a desertora que na verdade não sou." Tudo bem. Ninguém estava interessado em semelhante exposição de motivos, que pareceu supérflua e enfadonha. Mesmo assim fiz questão de dizer. Se alguma das colegas agora resolver prestar um grande serviço à sacrossanta verdade, que o faça sabendo que no fundo é uma sacana de uma fofoqueira.
Às correrias, portanto. Diários de classe: HAHAHAHAHAHAHA!!!! Sempre soube que deveria confiar na minha intuição. Este ano, só de pirraça, não preenchi um (1) puto diário. Havia levantado, ao início do ano, a possibilidade de realizarmos uma chamada por dia em cada classe (e não seis, cada professora fazendo a sua, e tendo por sua vez que fazer seis chamadas por dia!). Nossa escola tem controle de presença, ninguém cabula aula impunemente, há muros grandes, funcionários em número suficiente para saber o que os alunos fazem uma vez lá dentro. Então, argumentava eu na ocasião, para quê dedicar seis vezes mais tempo que o necessário com esta atividade tão desagradável? Houve respostas de vários tipos:
"É assim que eu aprendo os nomes deles."
(Esta na época me desarmava. Eu estava chegando e não sabia o nome de ninguém, mesmo. Mas se fosse hoje, não me desarmaria - passei, de pirraça como disse, o ano todo sem fazer chamada. E aprendi o nome de todo o mundo do mesmo jeito.)
"Eu gosto, estou acostumada. Sempre fiz assim."
(Essa eu rebatia bem. Tentava dizer, polidamente, que, do modo como temos feito, as coisas não andam saindo tão bem a ponto de acharmos que não devemos mudar. Mas mesmo com toda a cortesia de que eu era capaz, essa constatação deixava minhas colegas muito bravas...)
Bem, como tantas vezes, o assunto virou tabu. Em horários coletivos, quando eu falava nisso novamente, algumas mulheres davam uns gritos, outras sussuravam numa língua desconhecida, e eu só ia constatando cada vez mais a semelhança da nossa sala a uma convenção de bruxas. Tá bom, pensei. Eu não vou mais perder tempo com isso, que se dane.
É claro que se eu não controlasse presença, os alunos aos poucos perderiam a confiança naquela fantástica instituição - o que se voltaria também contra mim. Sou contra práticas totalmente individuais num trabalho coletivo por definição. Então, inventei o seguinte: ao invés de fazer chamada, entrava e perguntava para os alunos: "Hoje, quem faltou?". Para evitar mentirinhas, de vez em quando do nada eu aparecia com a lista e fazia a chamada em seguida, confirmando as informações que eles me houvessem passado. Nunca estiveram incorretas: os alunos dessa escola são muito caxias, via de regra. Mas como os diários sempre me saíssem com alguma data errada, faltando dia de reposição de ponte, sobrando dia de reunião pedagógica, essas coisas, então este controle eu fazia nuns cadernos da Moranguinho que comprei no início do ano. E os diários, pensava, faço de uma vez quando pedirem - melhor que ter que refazer tudo e deixar tudo rasurado mil vezes. O diário rasurado é uma bola de neve: quanto mais você erra, mais se confunde, e mais ainda erra.
Bem, retomemos a despedida. Não preenchi um puto diário, e agora é que não preencho mais mesmo, nem perante um decreto assinado pelo Kassab em pessoa. Bom, mas as notas e as faltas eu tinha que passar, não é? Então, pedi primeiro a exoneração, que como eu disse para a diretora, "assim eu fico mais livre pra trabalhar." Daí avisei para as crianças que teríamos prova assim, assim e assado, e fui elaborar as avaliações. Comecei a corrigir as atividades que fizemos ao longo do semestre. Tudo isso foi relativamente simples, uma vez fora da sala de aula (!!!).
O que eu realmente não podia deixar de fazer era apressar a nossa apresentação do coral para os aluninhos de primeira a quarta série. Coisa que eu nunca tinha feito, não tinha idéia de como fazer, mas pensei assim: se elas não perceberem minha insegurança, vai dar tudo certo. Porque qualquer coisa que sair vai ser um pequeno ritual de finalização, uma forma de registrar na vida delas um acontecimento ligado à experiência que tivemos. Então, marcamos a data e uns ensaios adicionais, em que eu iria à escola especialmente e tiraria alguns alunos de sala de aula - "Professora, poooor favoooor, me tira da aula da Romilda!!!"
Quando eu era criança, tive uma professora de piano polonesa. Hoje não sou pianista, creio que porque não estudei teoria musical, e me parece que rapidez de leitura de partitura, conhecimento de harmonia, essas coisas, alavancam, estimulam o estudante a deslanchar - por uma variedade de repertório, mesmo: é chato tocar muito tempo as mesmas coisas. Isso não me incomoda muito. Eu ainda me considero estudante, e artisticamente minha maior afinidade é com música popular. Creio que ainda haverá tempo para conciliar educação e música, este coralzinho foi um ótimo laboratório. Mas se falei da minha professora polonesa é porque, curiosamente, ela se tornou minha grande referência pedagógica prática. Referência, sobretudo, de mescla de afetividade, senso de humor e autoridade. Inúmeras vezes, me apanho imitando pequenos gestos que ela utilizava para lidar com cobranças, chantagens ou mesmo probleminhas emocionais mais corriqueiros dos alunos : "Calma, calma, Eulaliazinha querida, tudo vamos resolver, seremos todos felizes!"
Eu falo até as mesmas frases, uso até as mesmas inversões - "tudo vamos fazer" - que no meu caso ficam ainda mais despropositadas para um observador externo, já que à minha professora era concedida a licença poética de ser estrangeira...
Enfim. No caso do coral, a aproximação afetiva com as meninas foi muito grande, e, contraditoriamente, ali eu precisei que elas fossem muito mais subordinadas e disciplinadas do que em sala de aula. Por isso, ali eu creio ter involuntariamente encarnado a professora polonesa mais do que em qualquer outro momento da minha trajetória pedagógica. Esta deve ter sido a principal razão pela qual ninguém percebeu a verdadeira insegurança que eu sentia o tempo todo.
No dia da apresentação, cheguei à escola e chamei as meninas e o Gabriel. "Vamos ficar aqui, no quintal da cozinha que fica atrás do palco." O palco é outra história: fica no pátio do recreio, em área coberta, no térreo, embaixo das salas de aula. A direção quer derrubar, com o pretexto de construir um refeitório. Alguns professores são contra. Eu havia dito, no início do ano, que queria antes de dar opinião, usar o palco alguma vez, para saber se a acústica do lugar propicia que ele seja útil.
Ali, num quintalzinho que eu nem sabia que existia, ficamos escondidos nos arrumando e ensaiando durante as primeiras aulas e o intervalo. Comemos ali, as merendeiras deixaram nosso lanche separado. Vendo o fuzuê todo, até pessoas que nunca colaboram e em geral fazem cara feia, vieram ajudar - trazendo a sobremesa numa bandejinha, arrumando uns bancos em frente ao palco, não se incomodando com a bagunça. As meninas estavam ansiosas e felizes. O Gabriel, meio triste, parecia ter tido algum problema sério em casa. Algumas meninas escaparam durante o intervalo, todas de roupa preta justa, com uns lenços coloridos no cabelo - que eu comprei na vinte e cinco. Estavam muito bonitas, e eu desconfiei que queriam ser vistas. Saí, fui atrás delas. Os grandes de quinta a oitava vieram me cercando: "Também queremos ver, não é justo não deixarem só por causa de alguns que tiram sarro, nós vamos respeitar..." Essas conversas. Expliquei, pedi para a Célia me ajudar a explicar: foi combinado assim com as coralistas, não posso mudar de idéia agora, seria expor as meninas.
Findo o intervalo, chegaram os pequenos, duas a três salas de cada vez, acompanhados por suas professoras. Conversei com eles, chamei as meninas, cantamos e dançamos. Da segunda vez que estava esperando os pequenos se acomodarem e fazerem silêncio, a Luiza - auxiliar de período - veio me pedir:
"A oitava série queria muito descer e está sem aula... Será que eles podem..."
Respondi: "Nem por todo o chá da China."
Ela saiu rindo.
As meninas de primeira a quarta, no final, vieram conversar. Queriam saber se tinha "lugar pra mais uma."
As professoras ficaram muito impressionadas com a civilidade e o interesse dos seus alunos. Eu fiquei muito feliz.
Trocamos muitos beijinhos e abraços, as coralistas sabem que este ano para mim já acabou. E, que, como eu costumo dizer, o futuro a Deus pertence. Oxalá esta despedida tenha sido algum presságio.

3 comentários:

  1. Nossa, cara... Que sentimento bom.

    Eu tiro uma lição disso: Todo o sucesso do mundo, cabe dentro de um pequeno ato.

    Foi um coral, uma apresentação, mas olhe como ficou claro a diversidade de "tabús" e "coisas que falam que não é possível acontecer num colégio público" que foram quebrados. Na minha opinião esse evento extraiu grande nobreza dos pequenos, e isso é bom pra jogar na cara de quem não acredita que eles a tenham.

    Eu vou torçer para haver várias Professoras Eulálias por aí, transformando as coisas de dentro, com requintes de poesia. =]

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  2. Por essas e outras que continuo sendo uma sentimental.

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